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Trabalhar no IPO

Viver o outro lado do cancro

Qua, 13/02/2019 - 17:40

Os doentes oncológicos sofrem física e emocionalmente, e o apoio que recebem de quem os rodeia é essencial no tratamento. Quem trabalha no Instituto Português de Oncologia de Lisboa, Porto e Coimbra lida diariamente com o cancro, mesmo sem estar doente. Dos médicos aos empregados de limpeza, todos travam uma luta contra a doença.

O IPO de Lisboa tem 1900 trabalhos, entre os quais 360 médicos, 550 enfermeiros, 185 técnicos de diagnóstico e terapêutica e 130 técnicos superiores de saúde.

Andreia Teixeira, tem 36 anos e é auxiliar de pediatria no IPO

Desde pequenina que Andreia Teixeira conhece o IPO. Cresceu naqueles corredores porque era o local onde a mãe trabalhava. Habituada a ver doentes com cancro e a saber as necessidades que têm, bem como as dificuldades por que passam, esta auxiliar tinha o objetivo de ajudar estas pessoas, seguir as pisadas da mãe e trabalhar no IPO.

Apesar de a progenitora nunca a ter deixado visitar a pediatria, Andreia Teixeira sentia que era ali que queria ser útil. «Na altura, era uma coisa que queria muito: ajudar. Como já conhecia o ambiente do hospital, nada me chocou. Estava habituada a ver. Para mim, fazia mais sentido fazer trabalho junto das crianças do que com os adultos, pois levam tudo a brincar e torna‑se mais fácil. Os mais velhos têm consciência do que estão aqui a fazer e acabam por ficar mais deprimidos. É difícil ajudá‑los.» 

Auxiliar de ação médica no Hospital de Dia onde as crianças fazem os tratamentos em ambulatório, Andreia Teixeira começou o seu percurso no 7.º piso do IPO, o internamento da pediatria: «Durante a manhã dão‑se os pequenos‑almoços e distribuem‑se as roupas – as camas mudam‑se todos os dias. Depois, à hora do almoço, distribui‑se a comida pelos doentes, de acordo com as dietas. À tarde, repõem‑se os materiais para os enfermeiros e ajudamos em tudo o que eles precisam, desde os banhos a outras situações. Aqui em baixo, no Hospital de Dia, o principal objetivo é tentar manter tudo
arrumado, repor material e ajudar no que for preciso – há crianças que, por exemplo, são mais difíceis de picar e os enfermeiros precisam de nós para os auxiliar. Lá em cima, no internamento, temos um contacto mais direto com as crianças porque estamos mais tempo com elas. Há sempre uma conversa ou outra, uma brincadeira nos corredores... Como em todo o lado, há miúdos que se metem mais connosco do que outros. Os que chegam de novo são, naturalmente, mais tímidos e, por isso, temos que ter mais cuidado, até nos deixarem entrar um pouquinho no mundo deles.»

A verdade é que se há momentos de brincadeira em que todos se esquecem da razão por que estão ali, há outros em que o ambiente fica de tal forma pesado que é complicado trabalhar. «O que mais me custa são as situações difíceis. O fim... O fim de algumas crianças. Não se lida com isso. Também choramos. No pós, somos nós quem ajuda os enfermeiros... no que precisarem. Há casos que me marcam bastante. No início, quando comecei a trabalhar, tinha uma maior ligação com eles. Nessa fase sentia‑me mais aberta para ajudar. A verdade é que passamos tantos dias com a criança e com a família, que criamos laços que acabam por ficar. Mais tarde, aprendi a defender‑me um bocadinho mais. Já me aconteceu chegar ao final de um dia, depois de uma perda, e não ter mais vontade de vir. Custa. Há casos que nos custam muito e é difícil regressar e olhar para o quarto vazio... Mas temos que conseguir ultrapassar, senão não conseguimos estar cá.»

Após uma década a lidar com o cancro infantil, Andreia Teixeira assume que já pensou em mudar de trabalho, ter outra atividade. «Nesta área, para mim, só faz sentido que seja aqui, na pediatria. Em mais lado nenhum.»

Madalena Santos, tem 32 anos e é médica oncológica. Trabalha há oito anos no IPO

«Aqui não quero ser máquina, quero ser a Madalena médica»

É médica e escolheu a oncologia como especialidade. Até terminar a formação nesta área, Madalena Santos trabalhou noutras unidades hospitalares, mas acabou por ficar a exercer no Instituto Português de Oncologia, em Lisboa.

O facto de ser um hospital dedicado ao cancro, onde não só surgem casos raros, como o estudo e a investigação da doença acabam por ter uma dimensão maior do que em qualquer outra unidade hospitalar, faz com que seja um local (quase) único para trabalhar: «Isso tem a ver com o tipo de doentes que seguimos e com as dificuldades que estão associadas ao cancro. Acho que todas as pessoas que aqui trabalham – e isto é transversal a médicos, enfermeiros, auxiliares, secretárias, senhores do bar, seguranças, etc. – têm uma grande preocupação com cada doente. É-nos incutido, enquanto trabalhadores do IPO, a necessidade de nos preocuparmos com os pacientes enquanto pessoas. No geral, aqui todos são simpáticos e tentam resolver muitos problemas do dia-a-dia dos doentes. É um esforço pessoal de cada um que aqui trabalha. É quase como se isso nos corresse no sangue. E isso nunca tinha visto em nenhum hospital», diz a médica.

Quando se lida com pacientes com diagnóstico de cancro é inevitável que Madalena Santos seja muitas vezes confrontada com caminhadas complicadas e finais menos felizes.

«Temos doentes em contextos muito diferentes. Há alguns com quem é importante falar sobre a morte, sobre a doença incurável, mas com um objetivo construtivo. Tentamos perceber quais são as expectativas que têm e ajudamo-los a gerir isso. Os doentes também nos ensinam muito e vamo-nos apercebendo de que as expectativas e os planos vão-se alterando. Há ganhos que, há cinco anos, nunca o seriam. O truque é sermos honestos com eles, é percebermos o que querem, ou não, saber – porque há quem não queira falar sobre estas coisas – e ir ajustando os objetivos a curto prazo, fazendo planos pequeninos. Chegamos à conclusão que os doentes ficam muito contentes com metas que são adaptadas a esta nova fase das suas vidas.»

Madalena Santos não esconde que, antes de ser médica, é também uma pessoa e que é inevitável envolver-se emocionalmente com os casos com que lida. Uns mais do que outros. «Se calhar, o doente que mais me marcou foi um que era da minha idade e tinha uma doença incurável... Não se diz ‘vais morrer’. Há casos em que sabemos que estamos perante uma doença incurável e, portanto, não fazemos ideia de quanto tempo é que aquela doença vai durar (não gosto de falar sobre tempos porque é hipotético e não acho que ajude alguém). É importante as pessoas perceberem que o que fazemos é para melhorar a qualidade de vida e os sintomas, e não que estamos a trabalhar numa cura, porque essa situação não é, infelizmente, possível. E como é que isso se diz? Como internos, aprendemos muito com os profissionais mais velhos e importa sermos formados na maneira de comunicar com os doentes, porque essa é uma parte muito importante do nosso trabalho. Depois, acho que a maneira como se deve dizer é devagarinho. Não se pode fazê-lo de repente. Tem que se ir dizendo que a doença está mais espalhada do que achávamos; que não é possível uma operação para este caso (que é algo a que os doentes se seguram muito); que vamos fazer tratamentos para tentar reduzir o tumor, mas sabemos que não vai desaparecer. Temos que passar a ideia de que o nosso foco passa a ser tentar reduzir o tumor para melhorar as queixas. Em todas as alturas vamos pondo ‘em cima dos pratos da balança’ o que é a doença e o que são as ferramentas possíveis ao nosso dispor.»

No entanto, há casos em que chega a altura em que já não há mais nada a fazer. «Quando alguém morre, vou para casa triste. De vez em quando, sem querer, caímos um bocadinho nesta rotina, parece quase que a morte passa a ser uma coisa normal, banal. Mas depois há casos que nos voltam a custar imenso. Ou porque são pessoas novas, ou porque a família era muito presente, ou por uma razão qualquer que nem conseguimos explicar. É muito importante lembrarmo-nos que não somos máquinas. Aqui não quero ser máquina, quero ser a Madalena médica e, portanto, esses casos que nos voltam a custar e a fazer-nos ficar tristes são muito importantes para não nos esquecermos de que somos pessoas. Quem vive estas coisas, com doentes a passar por situações tão complicadas, quem passa por estas situações tão duras e não transforma em nada a sua vida... é estranho. A mim, Madalena, lidar com situações tão difíceis ajuda-me a pôr as coisas em perspetiva, a ver o que é, realmente, importante na vida. Estar mais agradecida em relação às coisas é algo que aprendo aqui. Acho que é por isso que as pessoas no IPO têm uma maneira diferente de lidar com os doentes. Não quero ser egoísta, mas isto também nos ajuda muito a sermos pessoas melhores.»

Margarida Santos, tem 55 anos, e é empregada de limpeza. Esta é a segunda vez que trabalha no IPO

«Ao princípio, era complicado lidar com isso»

Quando se vive um internamento no IPO, todos os profissionais são importantes e um doente conta com todos eles, até com a empregada da limpeza, que é a primeira pessoa, todos os dias, a entrar‑lhe
pelo quatro adentro. Margarida Santos é uma dessas senhoras que, logo pela manhã, pede licença para limpar o quarto. Já cá tinha trabalhado há uns anos, mas viu‑se obrigada a abandonar o emprego para tratar dos pais doentes. Porém, voltou. Já está novamente ao serviço há três anos e assume que, apesar de existirem situações de grande desgaste emocional, gosta de ali trabalhar.

«Muitas vezes, vamos embora com a ideia de que, no dia seguinte, quando regressarmos, aquele doente já cá não vai estar. Ao princípio, era complicado lidar com isto. Saía daqui sempre a pensar neles. Por muito que queiramos esquecer, não conseguimos. Entretanto, também vamos ganhando uma ‘capa’ para podermos lidar melhor com as situações, senão andávamos aí o dia todo em baixo...» Margarida Santos já consegue distanciar‑se um bocadinho, mas há casos e pessoas que custam mais.

«Ainda há uns tempos, esteve aqui um senhor que me marcou muito. Neste serviço, a maioria dos doentes já é de uma faixa etária mais avançada, mas há tempos esteve aqui um senhor novo, devia estar na casa os 40 anos. Custou‑me bastante. Olhava para ele e custava‑me. Morreu durante o meu turno. Depois veio a esposa e chorava em cima dele, não o queria deixar... foi complicado», relembra.

Ainda assim, Margarida Santos tenta sempre ir trabalhar com um sorriso nos lábios e dar o seu melhor. “Se isto é o trabalho dos meus sonhos? Não é. Mas, já que estou aqui, tento fazer o melhor e ajudar no que posso além das minhas tarefas, que é manter o bom funcionamento, limpar e fazer o serviço para que os doentes estejam confortáveis.»

Natália Nunes, de 58 anos, é empregada de balcão nos bares do IPO, onde trabalha há 26

«Já podia ter ido embora daqui, mas não o faço por opção»

É uma das pessoas mais antigas a trabalhar no IPO de Lisboa. Natália Nunes nada tem a ver com os profissionais de saúde e é empregada de balcão nos diferentes bares distribuídos pelo hospital. «Quando cheguei aqui, deparei‑me com situações reais e os primeiros dias custaram‑me muito. Nem foi o cabelo, mas na altura vi uma pessoa sem um olho, por exemplo. Claro que, ao longo do tempo, acostumamo‑nos, mas não nos habituamos a lidar com isto de uma maneira diferente... Ao fim de tantos anos a trabalhar aqui, quer queiramos, quer não, há qualquer coisa que mexe. Há ligações que vamos adquirindo com clientes que nos dedicam uma palavra e nós a eles. Há um mocinho que já cá vem há 12 anos. É claro que ele, quando cá vem, não é para me ver. Ele vem à consulta, mas há sempre uma palavra. Acompanhei‑o um pouco à distância, desde os oito anos, e hoje tem 20. Agora, já está quase a entrar para a faculdade. Criam‑se ligações... Muitas vezes, lembramo‑nos de pessoas que já não vemos há muito tempo... e porquê? Porque já foram embora...»

Para Natália Nunes, há ainda os casos que nunca mais vai esquecer. «O que mais me marcou foi o de uma menina dos Açores. Ela tinha nove anos e, como ainda não havia telemóveis, pedia à mãe uma moeda de 50 cêntimos para telefonar para os Açores, só para ouvir a voz dos irmãos... A vida daquela mãe desmoronou‑se desde o dia em que a menina foi diagnosticada. Esteve aqui meses internada, foi há uns 15 anos. A menina acabou por morrer cá. Isto é de uma violência tremenda, mas as pessoas têm que continuar a vida. Outro caso que também me marcou foi o de uma mãe e de um filho. Ela estava no 5.º andar e ele no 7.º (Pediatria). A mãe acabou por morrer e o miúdo foi para o Porto, perdi‑lhe o rasto...» A vida continua e Natália Nunes assume que já teve hipótese de ir trabalhar para outro lado: «Já podia ter ido embora daqui, mas não o faço por opção.»

Carla Ramalho, tem 39 anos e é enfermeira no IPO há 18

«Temos doentes que se abrem muito connosco. Já chorei muitas vezes»

Desde que estava a tirar o curso que Carla Ramalho trabalha no IPO e não se imagina a ser enfermeira noutro hospital. «Tem sido desafiante, uma experiência muito enriquecedora, quer em termos pessoais, como profissionais. Tenho aprendido muito, tanto com os doentes como com os colegas. Somos uma equipa muito unida. Aqui, percebi o que realmente era a enfermagem.»

Os dias nunca são iguais para Carla Ramalho. Uns são melhores do que outros e nem sempre é fácil conviver com doentes oncológicos: «No IPO, os doentes são muito diferentes. Estas pessoas têm uma grande capacidade de luta. Perdem muito no seu percurso de doença oncológica. Sofrem muitas perdas e cada vitória é vista como uma grande conquista. Também nós perdemos e assistimos a muita perda, vivemo-la como vivemos as vitórias».

Casada e com filhos, Carla Ramalho assume que nem sempre é fácil ir para casa: «Sou mãe, casada há 15 anos, tenho quatro filhos e, às vezes, é muito difícil desligar. Todos os dias, no caminho até casa, tento desligar, mas é difícil. Aquilo que cá aprendemos também nos ajuda a perceber que o que há lá fora merece ser vivido, e que temos que dar valor às pequenas coisas. É o que tento transmitir à minha família.»

É verdade que a ciência tem evoluído ao ponto de existirem cada vez mais casos de sucesso no cancro, mas também é verdade que o número de diagnósticos aumentou. «Infelizmente, o cancro está a tornar-se cada vez mais comum. É raro não existir uma família com um caso vivido de perto. Eu própria tenho essa experiência. Penso que a ideia de que o cancro é uma sentença de morte começa a desvanecer-se e, agora, é uma doença crónica», defende.

Como é que alguém que lida com o cancro todos os dias o faz com um familiar? «Não consigo ser enfermeira. Sou familiar. Quando estamos do outro lado, vemos sempre as coisas de outra maneira. Não é fácil.»

Para quem está deitado numa cama de hospital, os enfermeiros acabam por ser mais do que simples técnicos de saúde. «Nós choramos muitas vezes. Em grupo. Sozinhos. É permitido e é saudável. Não é fácil porque queremos pôr uma ‘capa’ e transmitir força, mas nós também somos pessoas. Temos doentes que se abrem muito connosco. Já chorei muitas vezes», revela Carla Ramalho. Ainda assim, será que trocava o IPO por outro hospital? «De maneira nenhuma. Já surgiram várias oportunidades para trabalhar noutros sítios, mas pensar nelas dói-me. Trabalhar noutro sítio não me vai fazer sentir tão completa como aqui.​»

Texto: Lídia Belourico; Fotos: DR

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