Documento
A história arrepiante de Cláudia

Mãe perde filho de um ano quando estava grávida de três meses

Sáb, 10/08/2019 - 19:48

«A vida escolheu este caminho para mim» foi uma das primeiras frases referidas por Cláudia nesta entrevista

Há entrevistas difíceis de escrever e de ler. Esta é, certamente, uma delas. Se é mãe vai ter vontade de abraçar Cláudia, que perdeu um filho com leucemia grave aos 16 meses. Pouco tempo depois nasceu Constança. «A vida sabia que era o melhor para nós», diz-nos.

«A vida escolheu este caminho para mim» foi uma das primeiras frases referidas por Cláudia nesta entrevista. Ela explica porquê. «Talvez essa seja a forma mais “simples” de me conformar com a realidade. Não acredito que tudo seja destino, mas acredito muito que a vida nos põe no caminho alguns desafios para que deles consigamos tirar alguns ensinamentos e lições, não querendo com isto dizer que isto não envolva muito sofrimento, porque envolve. Por isso, sim. Acredito que a vida escolheu este caminho para mim. E sou muito grata por isso, no fundo fui eu que tive o privilégio de ser a mãe de um menino tão especial como o Duarte.»

Cláudia Fernandes engravidou de Duarte no início de 2014 aos 21 anos. Nem ela nem o companheiro, João Baptista, na altura com 29 anos, planearam a gravidez. «Não estava de todo nos nossos planos, mas quando ele nasceu foi a melhor sensação das nossas vidas. Lembro-me de não largar o meu bebé nem por um segundo, de ser extremamente, talvez exageradamente, cuidadosa com ele. Fazia-me confusão alguém tocar nele sem ser o pai ou eu. Tinha medo que algo acontecesse. Sempre foi um bebé extremamente amado e protegido. Vivíamos para ele.»

O diagnóstico da doença e o «murro no estômago»

O assunto «doença» é difícil recordar para Cláudia. «Até porque hoje faço o exercício de transformar esses momentos de sofrimento em amor, no fundo foi isso que sempre nos moveu, o amor que sentimos uns pelos outros», diz.

Aos nove meses de idade, Cláudia começou a achar que o filho apresentava alguns sinais de estar a ficar doente e ficou em alerta. «Tinha febres esporádicas, menos apetite. Sinceramente nada que se fizesse prever o que acontecia depois… O tom de pele dele ficou amarelado. Mas como era muito ansiosa com ele, quis sempre achar que não era nada de mal. Mas o meu coração não me deixava tranquila. Fomos ao pediatra que, depois de alguma insistência, lá mandou fazer umas análises ao sangue… E aí começou tudo, começou a impotência, o sufoco de mãe e mal sabia de tudo o que vinha depois. Picar o Duarte foi muito difícil, o meu coração não estava a aguentar, mas não o deixei, nunca – nem por um segundo. Eu era o suporte dele e sei que ele precisava de mim», recorda emocionada aquela que nunca esperou ter o seu bebé em risco de vida.

«Não esperava, o meu bebé… As análises estavam péssimas. Começam as caras do médico que está a perceber tudo mas não pode dizer nada. Comecei a habituar-me a essas caras. Até chegarmos ao IPO tudo era estranho, não sabiam nada. Mas hoje sei que já estavam a ver tudo. Nunca tinha sido tratada com tanto carinho e atenção. Algo se passava. Passámos aquela noite no hospital de Cascais onde fez algumas transfusões de sangue e plaquetas. O pai vinha a caminho e eu pouco me lembro. O meu corpo deixou de ter sentidos completamente, ouvi várias vezes a expressão “perdi o chão” e senti isso.»

O choque foi enorme e Cláudia não deseja a ninguém o que passou. «Nada se passava em mim, necessidades fisiológicas deixaram de haver, não tinha fome, não tinha frio, não tinha calor, não tinha sono. Lembro-me apenas do cheiro e do bloco de uma pessoa que não sei se era enfermeira ou psicóloga, a quem eu apenas perguntei se era uma virose. Insistia com ela no meio das perguntas para quase me dar a certeza que não era nada de grave, tal como fiz com todas as pessoas com quem me fui cruzando.»

«Quando entrámos no IPO tudo era muito confuso ainda para mim, por um lado eu percebia claramente onde estava, mas era preciso ele sentir tanta força e apoio do meu lado que acho que não tive muito tempo sequer para interiorizar tudo. Foi tudo extremamente rápido. Quando dei por mim estava sentada com o João em frente de uma médica que foi muito assertiva comigo. Quando me falou que o Duarte teria de fazer um medulograma eu ainda estava na fase em que achava que podia ser uma virose.»

E foi aí que Cláudia descobriu o que tinha realmente o filho. E ela ainda recorda cada palavra que ouviu naquele dia que jamais esquecerá. «O Duarte tem leucemia, só temos que saber qual é o tipo», afirmou a médica. Leucemia Megacarioblática aguda – M7 com uma translocação entre os cromossomas 9 e 11. Era este o tipo da doença, descoberto entretanto.

«Acho que naquele momento tanto eu como o pai congelámos. E não me lembro sequer o que respondemos. Mas recordo-me de sentir durante todo o processo uma enorme sensação de “ok, o há a fazer?”, tinha medo apenas de ouvir “não há mais nada a fazer”. Enquanto isso, há esperança. Que estaríamos ali a fazer se não houvesse esperança?»

Cláudia confessa que todo o processo de doença do Duarte desenvolveu nela uma «praticidade incrível». E a necessidade sobrenatural de salvar o filho, como qualquer mãe o sente, foi a prioridade. «Senti que tinha que o proteger, gelei por uns segundos. Mas a verdade é que logo agi. Estava exausta, muito cansada mesmo, das noites anteriores, mas não sentia quase nada a não ser aquele desejo quase animal de o proteger do que vinha (que na verdade todos desconhecíamos).»

A dura realidade do IPO

A fase do Instituto Português de Oncologia (IPO) não é fácil para ninguém e Cláudia recorda o que sentiu na altura em que este passou a ser a sua segunda casa. «Claro que é sempre muito difícil para uma mãe ver o seu filho em sofrimento. Mas a pediatria do IPO transborda amor e dedicação por todas as partes. Claro que existe muito sofrimento, mas comigo, daquilo que vivi e retive fomos sempre muito bem tratados, com verdade (mesmo que dura). Com muito apoio, com muito carinho», conta. «Ganha-se ali um sentimento de proteção geral, para com as outras crianças, para com os outros pais. É uma lição de vida incrível. Nós sabemos o que eles (as crianças) têm, mas eles querem conforto, e ser amados.»

A forte ligação com outros pais e com os profissionais de saúde foi inevitável. «Aprendi muito com aquelas crianças com quem privei, criei laços incríveis com outros pais. E aqueles enfermeiros, médicos, auxiliares, educadoras sem saberem marcam a nossa vida e existência para sempre. Nunca perdi a esperança num futuro risonho, mas não nego que já me revoltei muitas vezes. Só que escolhi continuar a viver… O Duarte fez, faz e fará sempre parte da minha vida, mas de outra forma.»

A jovem tem, ainda hoje, ligação com alguns médicos e enfermeiros da instituição. «E quero continuar a ter. Não falo todos os dias, nem ligo constantemente. Mas sei perfeitamente que marcámos algumas pessoas, tal como elas nos marcaram a nós. A médica que acompanhou o Duarte no dia que partiu mudou a minha vida, a minha visão, o meu caminho. O meu filho foi muito abençoado com as pessoas que se cruzaram no caminho dele. Estudar todos podemos estudar, agora ser um bom profissional e um SER HUMANO excepcional e conseguir conciliar diariamente esses dois lados, não é para todos. Só consigo sentir gratidão», agradece Cláudia, enaltecendo o trabalho de todos aqueles que acompanharam o pequeno Duarte.

O «adeus» depois da esperança

O início da luta contra a doença começou da melhor maneira possível e a esperança de que tudo iria correr bem mantinha-se a cada dia que passava. No entanto, a vida pregou uma partida a esta família. «O primeiro tratamento do Duarte correu muito bem, ficou quase sem células más. O tempo foi passando e a doença começou a ser mais forte que os próprios tratamentos, até que a única solução seria mesmo o transplante. Mas ao contrário do que se pensa, nem todos em todas as condições podemos fazer transplante de medula. O Duarte só poderia fazer quando não tivesse células más, e tinha. Muitas», relembra Cláudia.

«Chegámos a ouvir a temida frase “não há nada a fazer”. Podíamos optar por fazer uma quimioterapia paliativa, que iria apenas (na nossa opinião) aumentar o tempo de vida sem qualquer qualidade. Então decidimos que queríamos o nosso filho enquanto este estivesse confortável e bem. Viemos para casa, com vários medicamentos de controlo sintomático.»

A esperança renasceu com uma chamada telefónica, mas durou pouco tempo, infelizmente. «Até que nos chamam ao IPO e havia outra vez esperança. Uns comprimidos que pelo que percebi ainda estavam em ensaios clínicos e o Duarte começou a fazer essa medicação. Mas passado muito pouco tempo começou a ficar doente, a imunidade dele estava muito fraca, o corpo dele muito cansado.»

E foi uma laringite e faringite que o começaram a enfraquecer mais. «Passou uma noite muito má no IPO e depois teve que ser transferido para os cuidados intensivos pediátricos do Hospital de Santa Maria. E tudo começou a ficar pior, os pulmões muito fraquinhos…»

Até que veio a pior das notícias, a notícia que nenhum pai e mãe deveria receber. «As coisas pioraram muito no Santa Maria, de forma gradual. Exame a exame… conversa a conversa… Foi lá que ele acabou por partir…»

Como consegue uma mãe aguentar a morte de um filho tendo outro na barriga? «Com fé, talvez. Não sei se consigo racionalmente responder a isso. Às vezes sinto que fui muito abençoada com força naqueles momentos mais difíceis. Tenho também que referir que temos uma família muito coesa, cheia de amor, que não nos largou e nos apoiou de uma forma muito importante, mudou tudo.»

A Cláudia considera-se uma força da natureza? «Pela primeira vez vou assumir que fico muito sem jeito quando me chamam guerreira, força da natureza e outros nomes assim do género. Sou mãe. Apenas, mãe! E não basta?»

O nascimento de Constança e a dor da saudade

«Um jogo de cintura fora de série.» É desta forma que Cláudia descreve os últimos três anos da sua vida. «Estes três anos foram de adaptação a tudo novamente, um processo de mutação intenso. A Constança nasceu e quis sempre dar-lhe o amor que merece, dentro da dor recente do Duarte ter partido. Tenho muitas saudades do Duarte, choro algumas vezes. Mas deixei de esconder tanto quanto escondia. Se me apetecer chorar, choro», confessa aquela que agora tem a prioridade de educar da melhor forma a sua filha. «A saudade é uma emoção que ela irá sentir ao longo da sua vida, e eu estou a educar um futuro adulto. Por isso se me perguntar porque estou a chorar respondo-lhe de forma honesta que estou a sentir saudades. Com normalidade, e dentro daquilo que nos parece saudável enquanto pais, vamos continuar a fazer as coisas desta forma. A Constança faz parte da nossa família, assim como o Duarte. Esta é a nossa realidade, e será sempre a dela também.»

Cláudia engravidou de Constança enquanto Duarte lutava pela vida no IPO. Essa fase não foi fácil e a gravidez não foi planeada. «Será que foi o destino?», questiona-se muitas vezes. A jovem descreve de forma incrível o acaso. «Hoje acredito que a vida sabia que era o melhor para nós. Mas, na altura, foi extremamente difícil de aceitar. Confesso que pouco me lembrei que estava grávida. Por vezes, ainda me culpo por isso, mas não soube fazer de outra forma», desabafa. «A Constança estava protegida no meu ventre, o Duarte precisava muito mais de mim naquele momento. Por isso, dei prioridade ao filho que mais precisava e resguardei o outro que sabia que estava seguro. Hoje percebo que foi mais ou menos isto que o meu coração fez, mas na altura não aceitei nada bem. O Duarte estava em vias de fazer transplante e eu só queria estar com ele a todos os segundos. Grávida seria bem mais condicionada nesse sentido. Mas tudo correu como tinha de correr.»

Por tudo aquilo que sofreu, Cláudia nunca mais viveu em tranquilidade enquanto mãe. O medo constante de que algo corra mal com Constança permanece diariamente. «Muito, por vezes de uma forma nada saudável. Nos primeiros meses via tudo e mais alguma coisa na Constança, estava sempre a examinar tudo e mais alguma coisa. Acho que, felizmente agora, já estou melhor em relação a isso. Mas quando fica doente fico com muito medo mesmo, admito. É incrível como o medo nos move e nos gela. O cérebro humano é muito inteligente e reativo», refere.

A nova Cláudia que nasceu

Cláudia confessa que já não é a mesma pessoa e que tudo mudou em si com tudo o que viveu. «Tudo, absolutamente tudo. Às vezes tenho dificuldade em lembrar-me de como era antes. Parece que só existo desde que o Duarte nasceu, incrível não é? Mudei muito, a minha forma de pensar. A minha visão perante o processo da morte, sobre a forma de morrer. A minha personalidade. No fundo tornei-me uma mulher, não posso saber se foi devido ao processo de doença do Duarte ou se aconteceria o mesmo se a minha vida corresse dentro dos parâmetros “normais”…»

Apesar de tudo, a jovem confessa-se uma pessoa mais crente, hoje em dia. «Eu quero acreditar que sou uma mãe tranquila. Aprendi também que não vale a pena proteger demasiado, nem libertar demasiado. Deixo-a aprender por ela e tento fazer diariamente esse exercício. Mas a Constança é completamente diferente do Duarte, muito mais independente. É talvez estranho, mas fiquei uma pessoa muito mais crente…»

A todas as mães que se emocionaram a ler esta entrevista…

Apesar de todo o sofrimento, Cláudia faz questão de deixar uma mensagem especial…

«A nossa história não é nada mais do que a nossa vida. Eu acredito que as mães se emocionam porque projetam esta realidade nelas próprias e nos seus filhos, a tal frase que tantas vezes ouvi “eu não aguentava” – assumo que é das coisas que mais me custa ouvir. Primeiro, porque não sou mais ou menos mãe que ninguém, e depois porque acho que isto é subestimar o Amor infinito que se sente por um filho.

Tenho a certeza que todas as mães que dizem “eu não aguentava” fariam exatamente o mesmo que eu fiz. Fui mãe e amei e amo eternamente o meu filho. Ajudei-o a nascer e ajudei-o a partir. Dei-lhe Amor.

Podemos ter muita coisa, mas se formos pobres em afetos, não andamos cá a fazer nada.

Quando o nosso caminho se confronta com a morte, lembramo-nos daquilo que não dissemos, de quem não vimos, de quem queríamos ter abraçado mais.

E é para isso que estamos nesta vida, para amar e ser amados. Quero continuar a acreditar nisto…»

 

Texto: Filipa Rosa; Fotos: D.R.

Siga a Nova Gente no Instagram