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Dadora de medula confessa

«Saber que o meu sangue salvou a vida de alguém é algo transcendente»

Qua, 05/08/2020 - 23:00

Uma entrevista a não perder.

«Nunca duvidei que iria fazer a diferença na VIDA daquele senhor, mas quando tive a confirmação que ele tinha sobrevivido foi um culminar de sentimentos, não consigo descrever. Saber que alguém tem o meu sangue a correr nas suas veias, e que foi esse mesmo sangue que lhe salvou a vida, é algo transcendente…»

As declarações são de Maria José Reiçadas. Aos 41 anos viveu uma das experiências mais marcantes da sua vida. Em maio de 2019 salvou a vida de um homem, que precisava com urgência de um transplante de medula óssea. Ao site Crescer, do grupo Impala, abriu o seu coração e recordou todo o processo, desde o momento em que decidiu ser doadora até ao telefonema que iria mudar a vida de um doente. Rejeita o rótulo de “heroína”, apesar de o ouvir da boca da maioria das pessoas.

Como tudo começou

Maria José inscreveu-se como Doadora de Medula no final de 2011. Um apelo televisivo do jogador de futebol Carlos Martins levou-a a dar esse passo. O filho mais velho do futebolista foi diagnosticado com uma aplasia medular aos três anos. Gustavo precisava de um transplante urgente de medula óssea. Na altura, Maria José, que é mãe de duas meninas, de 18 e nove anos, não conseguiu ficar indiferente a este caso e desafiou uma amiga para ir até à CUF Cascais.

«Na altura não sabia bem para o que ia e não tinha qualquer tipo de esperança que ia dar em alguma coisa. Mas tentar não custa…», começa por contar-nos. «Lembro-me bem que a afluência na CUF, naquela altura, era muita e fizemos a recolha de sangue sem nos explicarem o procedimento que englobava a entrada no banco de doadores.»

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O telefonema arrepiante

Maria José não esquece o dia em que recebeu “o” telefonema. «Fiquei completamente abismada quando recebi a chamada por parte da CEDACE a informar-me que tinha aparecido um doente em que eu era uma das potenciais Doadoras de Medula. Na altura pensei: “E agora? Como se processa? O que engloba?” Estava completamente fora de mim, elétrica, mas sem saber o que iria acontecer», recorda.

«Na altura, a funcionária da CEDACE explicou-me que eu era uma das potenciais doadoras, mas tinham sido contactados mais doadores. Teria que fazer análises ao sangue para ver se estava tudo bem comigo e para confirmarem a compatibilidade de todos os doadores. Explicou-me por alto o que poderia acontecer, sem se alongar muito porque não queria criar falsas expectativas. Combinei nesse mesmo fim de semana fazer as análises e lembro-me perfeitamente de ser recebida no laboratório como se fosse uma heroína.»

Alguns dias depois, Maria José foi contactada. Era a doadora mais compatível com o doente. Explicaram-lhe todo o procedimento e perguntaram-lhe se queria avançar. «Disseram-me que era livre de desistir durante todo o processo, mas que isso poderia implicar a não sobrevivência do doente. Nem por um breve instante eu pensei em desistir e foi isso que afirmei.»

A dolorosa preparação

Maria José passou uma manhã inteira no IPO a fazer exames e a falar com a médica que iria proceder ao transplante. Quando se confirmou que estava tudo bem, a intervenção foi marcada. O dia escolhido foi 7 de maio.

«Recordo-me que tinha uma colega de férias nessa altura e perguntei se não poderia ser na semana seguinte. Disseram-me que possivelmente o doente não conseguiria sobreviver até lá. Nem pensei duas vezes e avançámos. Tive que fazer uma preparação uma semana antes, que consistia em levar duas injeções diárias, beber muita água e não tomar medicação para além de Ben-u-ron», recorda aquela que teve algumas dificuldades nesta preparação.

«Os sintomas das injeções foram bastante dolorosos… dores no corpo, sintomas gripais, aumento de ansiedade, mas eram todos sintomas expectáveis para a situação. Recordo-me que nessas semanas tive as mesmas preocupações que tive quando estava grávida, ou seja, tudo o que fazia ou comia pensava se iria estar a ajudar para melhorar o processo para ter os melhores resultados possíveis para o doente.»

O dia da doação

No dia 7 de maio, Maria José chegou bem cedo ao IPO de Lisboa. Era um dos dias mais marcantes da sua vida. E a ansiedade era muita. Ao seu lado estava a amiga de longa data Patrícia Carinhas, que a acompanhou durante todo o processo.

A doação durou cerca de quatro horas. E as notícias foram as melhores. «Quando terminou a recolha e soubemos que tanto em qualidade como em quantidade, era suficiente. Foi um verdadeiro alívio, senti uma descompressão enorme. E recordo-me perfeitamente que numa cama próxima de mim estava uma doente oncológica que tinha sido transplantada… Olhou para mim com os olhos cheios de lágrimas e disse: “OBRIGADA!” Aí, todos os sentimentos vieram à flor da pele e desabei num mar de lágrimas. Nunca me vou esquecer daquele olhar…», relata emocionada.

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«Não sou nenhuma heroína»

Das oportunidades que teve em partilhar a sua história, foram muitas as reações das pessoas. Todas elas enaltecem a sua atitude. «Senti-me lisonjeada, acarinhada, abençoada por todos. Fiz a partilha no trabalho, na escola da minha filha de nove anos e no Facebook, através da minha página e de dois grupos de mães. Fiz a partilha para poder desmistificar o processo, ajudar quem quer doar e dar a minha palavra de conforto a quem precisa da doação», refere aquela que até fez uma amiga nas redes sociais devido a esta assunto. Patrícia Lopes, residente no Algarve, estava prestes a doar a medula no IPO de Lisboa quando viu o testemunho de Maria José.

«Colocou-me dúvidas, questões e ansiedades, aos quais eu consegui responder, pois tinha passado pela mesma experiência. Não a conheço pessoalmente, mas ficámos com uma profunda admiração e amizade.»

A palavra heroína passou a fazer parte da vida de Maria José. São muitas as pessoas que a consideram como tal, mas ela rejeita essa alcunha. «Se me considero uma heroína? Não, nem por sombras. Sei que fiz toda a diferença na vida daquela pessoa e de todas as pessoas que o amam. Sei que durante todo o processo coloquei a vida do doente em primeiro lugar, sem dúvida. Mas fi-lo de coração, com toda a minha alma e força. E voltaria a fazer sem hesitar.»

O mistério da pessoa que foi salva

Maria José nunca soube quem é a pessoa que salvou. É uma das regras deste procedimento. Apenas poderão comunicar através de carta, sem nunca referir localização, identificação ou nacionalidade. No entanto, Maria José conseguiu saber que salvou a vida de um homem de 60 anos que não é português.

«Este senhor estava bastante mal e eu salvei-o. Poderei entrar em contacto com ele através de carta, mas teria que passar pela CEDACE para eles retirarem todos os elementos que poderiam sugerir que eu sou e de onde sou. Terão também que a traduzir. Só depois seguiria para o doente. Ainda não o fiz, porque com intermediários e procedimentos não sei até que ponto é que a carta chega ao destinatário. E também tenho algum receito de ficar ansiosa por uma resposta que poderá nunca chegar…»

«Sejam doadores»

Com este sincero e simples testemunho, Maria José pretende alertar as pessoas para este tipo de problemática em Portugal e além-fronteiras. E faz questão de mandar uma mensagem especial: «Espero que sirva de exemplo e incentivo para que existam mais Doadores de Medula e que o façam de uma forma consciente. E para quem tem medo ou falta de informação falem com o IPO ou o CEDACE. Eles esclarecem todas as dúvidas. Se tiverem oportunidade falem com doadores que passaram pelo mesmo que eu, vejam as experiências deles, o que eles têm para contar. Pensem que poderia ser alguém próximo de vocês, um filho ou um pai… Vocês não moveriam céu e terra para arranjar doador compatível? Neste momento, vocês poderão ser doadores de medula compatíveis com alguém que depende disso para sobreviver.»

As falhas no sistema

Maria José voltaria a fazer a doação, mas faz questão de chamar a atenção para algumas falhas no sistema de saúde. A falta de informação, o que acontece durante o processo de doação, a falta de legislação para doadores de medula são alguns exemplos.

«Eu, enquanto Doadora de Medula, não me foi descontada a manhã que passei no IPO a fazer exames, porque a diretora de Recursos Humanos da minha empresa não o permitiu, uma gentileza da sua parte. O dia da doação e os dias posteriores, que tive de estar de repouso, foram descontados. Posteriormente foi restituído pela CEDACE, mas muitas pessoas não se podem governar com esse desconto. É uma vergonha descontar quando vamos praticar um ato destes», reivindica.

A falta de informação aos doadores após a doação é a principal lacuna para Maria José, que nunca teve acesso aos resultados das suas análises. «O IPO deveria dar os resultados das análises assim que as tivessem. Tive que ligar várias vezes para perceber se estava tudo bem, inclusive disseram-me que iam enviar os resultado por e-mail. Ainda hoje estou à espera», revela.

«Por parte da CEDACE perguntaram-me se queria ter informações do doente após dois meses a seguir ao transplante, ao qual eu respondi afirmativamente. Tive que ser eu a ligar passados três meses e só uma semana depois é que me ligaram com informações.»

 

Texto: Filipa Rosa; Fotos: Gentilmente cedidas por Maria José Reiçadas

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