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Crónica de Carlos Leitão

Um menino de 100 anos num mundo de velhos

Qua, 30/09/2020 - 12:34

Há por aí lugares escuros em que se pensa arrancar ovários às senhoras e sabe-se lá o quê aos senhores.

Eu tinha 16 anos e ele a idade suficiente para o intocável estatuto que alcançara há muito. O Teatro São Luiz era o palco da homenagem a Fernando Maurício (nome maior do fado) e lá estava a nata dos guitarristas, dos fadistas e até dos políticos. E estava ele, com a genuinidade e a grandeza, tempos antes de serem banalizadas no léxico diário dos humildes e dos “outros”. Viu-me só e, como um ancião, perguntou sorrindo: “O que vai cantar o menino? Não esteja nervoso, diga lá!”.

Com aquela viola baixo que acompanhou Amália durante décadas, o professor Joel Pina foi o único, entre tantos, a preocupar-se com o mais novo, cujos joelhos batentes e as entranhas histéricas denunciavam os medos. O único. Sem egos nem bazófia, e sem a tacanha dialética dos meios em que Deus e o Diabo conseguem ser bons amigos.

O professor Joel Pina tem 100 anos, e quis o destino que fosse o mesmo Teatro São Luiz a recebê-lo, desta feita para ser ele o justo homenageado. Arrisco a sua unanimidade. Nunca ouvi nem conheci ninguém com razões de queixa ou maledicência gratuita. Nunca lhe ouvi sequer um papel naquelas histórias mais ou menos fidedignas e jocosas que se contam na música. Sei que, em 100 lindos anos de uma vida regrada, Joel tratou cada ser humano com a reverência inerente à condição, sem laivos de arrogância ou superioridade moral, distintivas dos imberbes e dos idiotas. Joel é o seu contrário, tão simplesmente. 

Aprumo, verticalidade, educação, são apenas alguns dos mais nobres epítetos que lhe reconheço. A realidade niilista de espaços como a ética empalidece, sempre que o professor anda por perto, mas não nos iludamos demasiado. Há por aí lugares escuros em que se pensa arrancar ovários às senhoras e sabe-se lá o quê aos senhores. Ponhamos, então, os olhos na vibrante história de vida de um senhor raro que, aos 92 anos, ainda conduzia com mestria o seu BMW. É que o centenário professor Joel é exactamente o mesmo que me abordou quando eu tinha 16 anos… 

P.S. A crónica desta semana é dedicada ao “Né”, meu amigo de tanto e de sempre a quem a morte ceifou os dias e o futuro demasiado cedo.

Carlos Leitão, fadista
Fadista
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