Pode ser que um dia, daqui a muitos anos, se escreva uma história decente e mais polida em relação ao Ocidente e ao seu papel no Mundo. Até aí, entre a esperança e a desilusão de uns e de outros, mantemo-nos vedados pelas estórias da carochinha e dos bem-aventurados europeus que desbravaram os mundos, daqui até Marte e mais além.
O problema do desbravamento é que o afamado cariz medieval que tão bem nos descreveu mantém-se, firme e hirto, como uma barra de ferro que não há quem dobre ou serre ao meio. Desbravou-se, violou-se, queimou-se e pilhou-se, e temos a distinta lata de uns apalermados sobranceiros escondidos pelos pulos e pelos avanços do Mundo para, ao mesmo tempo, escondermos a pouca vergonha que nos resta e dizer que os culpados da pandemia são, afinal, os africanos. Os chineses estão, pois, dispensados por agora.
Em todo o continente africano, estão vacinadas pouco mais de 7% das pessoas, e a Europa mais os seus inabaláveis aliados andam à fossanga a fazer cagulos de vacinas para quando chegar o milésimo reforço. À boa maneira ocidental, percebemos tarde as bendições do altruísmo, e já que andamos a mamar das tetinhas africanas há tantos séculos, esta seria sempre uma boa forma de agradecer o que de lá trouxemos e trazemos, sejam diamantes ou outra coisa qualquer.
Mas não, venha lá a terceira dose, a quarta e as que forem precisas, pode ser que um dia sobre qualquer coisa, como agora, em que acenamos bandeiras com duzentas mil vacinas a caminho. Estropiar África não é apenas a pulhice secular a escrever nos livros de história com letras doiradas, é a mais infame cobardia ocidental, cujos despojos servem noticiários e redes sociais para entregar aos africanos o que nos sobrou numa salva de prata e com uma salva de palmas.
Há um ano, por esta altura, animávamo-nos com a chegada das vacinas e do Menino Jesus, e num ápice 10 países açambarcaram 75% das ditas com promessas de nos salvar do bicho. Um ano depois, andamos borrados de medo e já temos duas doses no bucho. Pois bem, lembremo-nos disso e de quem nada tem, agora que estamos prestes a abrir as prendinhas de Natal. Curioso, não é?
Texto: Carlos Leitão, fadista
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