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Crónica de Carlos Leitão

O mundo é dos espertos. Desculpemo-los!

Qua, 04/11/2020 - 08:00

Benfica e fado, politiquices à parte, casam o povo na ideia mítica da unidade nacional, e quanto a isso creio não haver dúvidas, nem para portistas e sportinguistas desapegados da fadistice.

Escrever sobre o Benfica é o mesmo que escrever sobre o fado. São questões bíblicas, mesmo para um ateu confesso. Há sempre algo de irracional e repetível, e não vale a pena tentar explicar, talvez porque não haja nada para explicar. É paixão de quentura e arrepio, é amor polígamo e picaresco, e é quase sempre exemplo de uma cega infantilidade. Tanto numa como noutra questão, impera uma sanha inviolável: estou-me nas tintas para quem os representa! Já o vi fazerem doutores, empreiteiros, cantadores e merceeiros, entre tantas outras profissões respeitáveis, mas imoderadas vezes descredibilizadas pelo desculpável deslumbramento.

Benfica e fado, politiquices à parte, casam o povo na ideia mítica da unidade nacional, e quanto a isso creio não haver dúvidas, nem para portistas e sportinguistas desapegados da fadistice. O Benfica, aos meus míopes olhos, será sempre o maior, seja liderado por Vieira, Noronha, o meu vizinho de baixo, ou por qualquer taxista de bigodes amarelados. O que eu realmente quero é que valha a pena a minha insanidade dos 90 minutos, o vernáculo e tudo aquilo que horroriza o mundo civilizado. O regresso à vida normal acontecerá a seu tempo, depois do jogo.

No fado não há presidentes, mas podia haver. Para mim, manter-se-ia o mesmo sentimento anárquico desta coisa de entender metafisicamente as paixões. Há, antes, os paladinos de qualquer coisa parva que defendem em tertúlias mais ou menos populosas. Há-os envergonhados, pipilantes, infames e intelectuais, e até os há – pasme-se – no Big Brother! Tal como antes, também aqui não me rouba espaço e tempo a questão de quem se acotovela para a meta: todos eram amigos de Amália, todos são a última bolacha do pacote, e ainda estou para tentar descobrir qual dos pioneiros colocou Mariza no estrelato. Tal como com o visionário olheiro de João Félix, são muitas as bocas que garantem a epifania “Mariziana”, como se a moça não andasse dez metros, sem (p)aladinos. Enfim, deve ser uma espécie de síndrome, que dispenso entender.

Nos entretantos da vida, o tempo vai tendo razão, e sobrevive sempre o essencial que deleita quem rega as paixões. Num mundo que definitivamente é dos espertos, sobre-nos a clarividência e a sensibilidade para os desculpar.

Texto: Carlos Leitão, fadista

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