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Crónica de Carlos Leitão

O dia em que a cultura nasceu

Qui, 26/11/2020 - 15:35

No passado sábado de manhã (que à noite não havia jeito), mais de 1200 técnicos, cantores, artistas de circo, actores, bailarinos e agentes vários estiveram no Campo Pequeno, em Lisboa, para lidarem sem espada e capote um Miura de cornos fortes que nos fura entranhas e carteiras.

Acho sempre triste e esplendorosa qualquer manifestação que defenda a cultura. Como se fosse preciso defender o que nos distingue, a Cultura lá sai à rua para gritar por si e por Portugal, não com o nacionalismo mais barato, mas com a ilusão de, pelo menos por um dia, os artistas se unirem em torno do elo que, afinal, os une.

No passado sábado de manhã (que à noite não havia jeito), mais de 1200 técnicos, cantores, artistas de circo, actores, bailarinos e agentes vários estiveram no Campo Pequeno, em Lisboa, para lidarem sem espada e capote um Miura de cornos fortes que nos fura entranhas e carteiras. Como que por magia, Luís de Matos alentou as gentes e o lirismo de uma sintonia artística apareceu pela luz de um sol invernoso. Por entre artistas esquecidos, desconhecidos e badalados, emocionaram-me os circenses que malfadadamente só nos chegam à lembrança por esta altura, quando as autarquias acendem as luzes de natal…

Aflijo-me, não pela acção, mas pela inevitabilidade do desfecho. Tenta-se vezes demais despertar algo que nos devia ser carnal desde tenra idade. No tempo da “portugalidade” e da cidadania (na escola ou fora dela), era escusado reclamar 1% para a Cultura ou a atenção da classe política para as dificuldades dos mesmos que lhes adornam festas, discursos, apertos de mão, congressos, e o resto do espectáculo.

A cultura faz decididamente parte da política, e mal vai o país se, por ignorância, o povo deixa entreaberta a porta do armário para os esqueletos começarem a sair. E já por aí andam demasiados mascarando ideias com “Covids” e beijando a face de cada um de nós. É essencial uma memória limpa e atenta, já que a Cultura moureja de sol a sol, talvez como nunca antes. Mas para a Cultura ter direito ao justo, manifestações e petições terão de valer a pena, e o mundo artístico terá de ser apenas um, e não a manta de retalhos contrafeita que serve como uma luva à meia dúzia de iluminados a quem a luz nunca se apaga. Sol ou sombra, se for justo e democrático, então é meio caminho feito para a credibilização do sector.

E quando chegarem as campanhas, lembrar-se-ão das portugalidades, de todos nós, artolas e artistas que descontamos e pagamos impostos, mas a quem os orçamentos nunca chegam, pois há incêndios que nunca param de arder. Quando houver cinzas, lá vão os artistas oferecer a única coisa que têm para vender. E vão.

E se no final de tudo isto não estivermos unidos, então não valerá a pena marcar-se nova manifestação.

Texto: Carlos Leitão, Fadista

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