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Crónica de Carlos Leitão

Falta-me tempo

Qua, 21/04/2021 - 06:00

Falta tempo para ver as séries e os documentários de que os meus amigos me falam com excitação; falta-me tempo (e paciência) para debates políticos que preferem o ambiente de um mercado levante ao esclarecimento,

Ela vem de todos os lados e bombeada com pujança de plataforma petrolífera, e inunda-nos como uma barragem que acabou de ceder. Na urgência de a arrecadar e de lhe dar tratamento, a informação arrebenta diques e firewalls e explode-nos como um balão de água em terça-feira de Carnaval e, como aí, não sabemos bem quem atirou.

Séries, filmes, noticiários, opiniões, documentários, televisões e redes sociais, todos se perfilam em jeito de batalhão de cavalaria, no desígnio honorável de trazer sabedoria, conhecimento e capacidade de crítica. Mas falta-me tempo para tudo o que vai chegando.

Tantas são as enxurradas que não tenho tempo nem discernimento para destrinçar ou analisar. A coisa faz-se com velocidade e prazo de validade. Se não apanhas, já foste! Espera pela próxima que, entretanto, também já foi, e assim, sucessivamente, pareço um guarda-redes de fraca categoria a ver centenas de bolas a entrar ao mesmo tempo.

Falta tempo para ver as séries e os documentários de que os meus amigos me falam com excitação; falta-me tempo (e paciência) para debates políticos que preferem o ambiente de um mercado levante ao esclarecimento; falta-me tempo para perceber que o Harry Styles substituiu o George Michael ou os D.A.M.A (não sou assim tão velho) na histeria das adolescentes.

Neste processo industrializado, ficam-me os livros para a cabeceira. Teoricamente será aí que o silêncio e o cérebro se vão encontrar, charneira deformada que teima em sobreviver aos tempos, mas como uma locomotiva desgovernada, o cérebro já adivinha novos conteúdos para amanhã, e não sossega. 

Entre o que se agenda e inventa, ler pode tornar-se no último acto de contrição social e dar-me algum tempo para emergir. Sem comandos nas mãos e redes sociais activas, não nos matarão por não sabermos o rasto ao Mundo por um par de horas. Sabemos que não está bem, que anda meio parvo, perdido, e que não tem tempo.

Uma casa no campo e uns rafeiros alentejanos continuam então no topo das tendências para o futuro da minha vida, e não é tanto uma questão eremita de infoexclusão, mas de saúde das têmporas e da minha própria saúde mental. Falta-me, sobretudo, tempo para isso.

Texto: Carlos Leitão, fadista

 

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