Lembro-me do ZX Spectrum ser ligado pela primeira vez, do gravador de cassetes indispensável para tudo ser possível e dos minutos de espera até o jogo “entrar”. Ou não entrar. Foi a minha primeira relação directa com o stress, uma vez que o êxtase dependia, em larga escala, da afinação da cabeça do gravador, tanta vez violentada. Ter tempo era, pois, imperioso.
Tudo isto é bizarro e longínquo para quem nasceu em época de tablets, ridículo porventura, mas esta foi a primeira realidade tecnológica de quem, hoje, tenta actualizar a “ternura dos 40”. Entre outros gadgets, ter um computador destes era uma sorte ao alcance de poucos. Não havia marcas. Havia o Spectrum. Ponto.
Ora, a rua era a rede social. Olhos nos olhos, mãos na terra, punhadas nas ventas, se fosse caso para isso (e era muitas vezes!), a mãe aos gritos a chamar-nos para casa, e jantar à pressa porque ainda havia tempo para a noite ser na rua, se os paizinhos assim o entendessem.
Com o Spectrum, ultrajámos a rua. Começava, aos poucos, a era do recesso do lar, de nos empanturrarmos de americanices comestíveis e de mil opções lastimáveis que nos tornaram lorpas conformadas com o sofá. Criou-se um Portugal de doutores e engenheiros, de tecnocratas emergentes, deslumbrados yuppies de braços abertos para os fundos perdidos da União Europeia. Os braços que outrora jogavam com berlindes e caricas em carros de rolamentos, e ao “bate pé”, esse bendito jogo que nos abriu a porta dos pequenos pecados.
Hoje falam-nos de apps e lançam-nos telemóveis que custam o dobro do ordenado mínimo. Fala-se de protecção de dados e oferecem-nos duas mãos-cheias de teras e megabytes. A rua está no mesmo sítio, mas a meninice (mesmo sem COVID) acontece à distância de um smartphone, com aquele olhar vidrado de quem já não vive sem 5G. E ai da criancinha que não mande o seu sainete junto dos colegas com a nova coqueluche tecnológica!
Numa semana em que se lança mais uma edição do primogénito dos smartphones, ainda alimentamos a ilusão da defesa da nossa vida privada, ao não nos vergarmos à aplicação Stayaway Covid, mesmo que a escancaremos em tantas outras. E tudo na mesma semana em que se anuncia o primeiro museu do mundo dedicado ao ZX Spectrum, em Cantanhede.
Hei-de ir, nem que seja para me lembrar da minha rua.
Carlos Leitão, fadista
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