Nacional
Alice Vieira

'Chamam-me a militante otimista'

Sex, 02/03/2012 - 14:20

Tem sido um exemplo de força. Há anos que trava uma luta contra a doença, mas continua a escrever “furiosamente”, é mãe, avó e uma devota da alegria.

Na sua opinião, ainda faz sentido assinalar o Dia da Mulher?
As coisas mudaram muito, mas infelizmente acho que ainda faz sentido lembrar este dia. Basta olhar para a maioria das famílias para vermos como o papel da mulher ainda é subalternizado.

As declarações do cardeal D. Manuel Monteiro de Castro também a chocaram, ao dizer que “as mulheres trabalharem todo o dia não é bom”, e que deviam passar mais tempo em casa a formar os filhos?
Eu acho que trabalhar todo o dia, estar pouco tempo em casa e não cuidar da formação dos filhos é mau para toda gente, seja homem, seja mulher! E acho também que as mulheres deviam poder escolher o tipo de vida que querem levar. Todos sabemos que, na maior parte das vezes, elas são as que trabalham sempre a dobrar: no emprego e depois em casa. E muitas vezes as suas carreiras profissionais são cortadas porque há os filhos, há a casa, há o marido, etc… Aliás, por que não dizer também que os homens deviam estar mais em casa a formar os filhos? Por quê só as mulheres? Aí sim, aí haveria igualdade…

A Alice tem sido um exemplo. Apesar de tudo o que lhe tem acontecido nos últimos anos, primeiro a doença e morte do marido, depois a sua própria doença. Apesar de tudo, nunca deixou de ser uma mulher extraordinariamente bem disposta. Como é que consegue?
Vivi a minha infância toda entre gente muito mórbida e altamente hipocondríaca e, se calhar, fiquei vacinada! (Risos) Desde cedo acreditei que nós temos nas nossas mãos a possibilidade de construir a nossa vida e reagir ao que de mau e bom nos vai acontecendo. São Gregório dizia que toda a nossa vida é feita de começos. Ou seja: vivemos muitas vidas, com muitas pessoas, e todas são importantes para nós. A morte do meu marido (Mário Castrim), e os terríveis três meses em que esteve no hospital, deu-me um abalo terrível. Foram mais de 40 anos de paixão diária, ele ocupava-se de todas as coisas miúdas do dia a dia para que eu pudesse fazer a vida que queria. E de repente faltou-me tudo. Mas tinha de seguir em frente. Há uma frase que um dia encontrei em Chicago: “Nunca ponhas um ponto final onde Deus pôs uma vírgula”. Há que continuar. Com a doença foi e é a mesma coisa. De nada serve a gente lastimar-se, porque isso só nos faz mal. Há sempre quem esteja pior.

É essa boa disposição que faz de si uma sobrevivente tão brilhante? É uma lutadora ou uma mulher muito teimosa?
Sou uma lutadora. E profundamente otimista. O meu querido camarada de jornalismo Rodrigues da Silva chamava-me “a militante do otimismo”. Mas tenho a sorte de ter a meu lado um grupo extraordinário de amigos e amigas. Acho que sem eles não conseguia encarar as coisas como encaro. Sou verdadeiramente “amigo dependente!”

Sorrir da forma como a Alice o faz é uma forma de vida?
Não é uma forma de vida, é a minha maneira de ser. Se não pudermos dar nada às pessoas, pelo menos podemos dar-lhes um sorriso. Nós sorrimos pouco, dizemos muito pouco às pessoas que gostamos delas, elogiamos pouco. Parece que temos medo dos nossos afetos.

O seu cancro sofreu uma recaída, e a Alice mantém-se em tratamentos. Como está a sua saúde?
Não foi uma recaída, foi uma consequência da muita radiação que apanhei há vinte anos quando os aparelhos não tinham o rigor que têm agora e a grande carga de radioterapia que então se apanhava potenciava o aparecimento de novos tumores, anos mais tarde. Voltei a ser “cliente” habitual do IPO, para tratamentos de radioterapia (agora com um rigor milimétrico!), sou vigiada de 3 em 3 meses, etc…

A Alice também é mãe, criou dois filhos, tem quatro netos... O que pensa dos recentes apelos do nosso Presidente da República ao aumento da natalidade, quando todas as politicas parecem levar-nos no sentido contrário, rumo a um País envelhecido?
É complicado falar-se em aumento da natalidade num tempo de crise como este! Porque não é só ter os meninos, tirar fotografias e os avós ficarem babados… É preciso ter condições para que as crianças cresçam de forma saudável, com boa alimentação, cuidados médicos, escola, atenção em casa, etc. Quando não há emprego, ou quando ele é mais que precário, como se pode falar em ter muitos filhos?

N’ O Livro da Avô Alice, um dos seus últimos, deu-nos a conhecer a sua faceta de avó pouco convencional, um pouco louca, e descontraída com esse papel. Também foi uma mãe descontraída, ou nem por isso?
Acho que fui sempre uma mãe descontraída. Nunca me lembro de estar “a educar” os meus filhos: eles viviam connosco, partilhavam a nossa vida, falávamos de tudo, conviviam com os nossos amigos, estavam muito integrados no nosso trabalho, e isso é era a melhor educação que eu lhes podia dar. Mas é preciso ver que vivemos com os nossos filhos, mas não vivemos com os nossos netos. Ou seja: depois de uma tarde de brincadeira, os netos voltam para casa. Não temos de nos preocupar com mais nada. Preocupámo-nos com os nossos filhos, eles agora que se preocupem com os deles. Que nós já não temos 20 anos (risos)…

No entanto, parece-me ser sobretudo uma mulher muito ativa. Com os seus vários projetos de livros, as crónicas... Não consegue estar quieta?
Tenho um enorme defeito, que me vem desde criança: sinto-me sempre “em culpa”, “em falta” se não estou a trabalhar. O que é terrível! Mas agora, até por motivos de saúde, tive de cortar com algumas coisas, tive mesmo de abrandar.

Essa atividade toda é que a mantém jovem?
Não sei. Acho que não envelheceria assim tanto se descansasse mais… Até porque o descanso é muito criativo. O Newton estava a descansar debaixo de uma árvore quando descobriu a Lei da gravidade…

Ouvi dizer que tem imensos livros na “calha”, um histórico, uma biografia de Enid Blyton, um romance para adultos... Que falar-nos nesses projetos?
Por princípio não gosto de falar de projetos. O livro histórico já saiu, Os Profetas (na Caminho), é o meu primeiro romance para adultos. Na Texto (Editores), entreguei um livro para crianças sobre frases idiomáticas. Agora trabalho na biografia da Enid Blyton, que tenho de entregar, na Oficina do Livro, até ao fim de março. Porque a seguir tenho outro livro a entregar até abril, de novo para crianças, e também para a Oficina do Livro. E a rematar, um romance para a D. Quixote. Como diz um dos meus patrões da “Leya”, sou a única escritora a escrever para as editoras todas do grupo...

Para além da escrita, dos livros, tem outros prazeres de que não abdique e que não se importe de nos confidenciar?
A minha vida não é só isto! (risos) Seria terrível se fosse! Como já disse, tenho o meu grupo de amigos. Com o meu “núcleo duro” almoço uma vez por mês. Para além disso, adoro cozinhar; às vezes ligo às vizinhas e vamos tomar café ao “Toninho”, a minha segunda casa; passo fins de semana em casa da minha melhor amiga, vou ao cinema, aos concertos das sete da tarde na Gulbenkian, adoro fazer malha e escrevo imensas cartas e postais a toda a gente. E festejo tudo o que há para festejar, aniversários, dia dos santos ... E festejo sempre, com os meus netos, o dia de anos do meu marido. Com bolo de velas e tudo.

À sua filha Catarina atribui o facto de ter começado a escrever (quando ela deixou de ter livros para ler). Foi por causa disso que ficou tão ligada à literatura infanto-juvenil, ou os jovens são mesmo o seu público?
Amo todos os públicos porque aquilo que verdadeiramente amo é a escrita, a literatura. Sem idades.

É uma mulher de amigos. Já admitiu ter muitos, e está muito ativa no Facebook... É uma crente na amizade?
O mais possível. Que seria de mim sem os meus amigos? Tenho fotografias deles pela sala toda porque preciso sempre que eles estejam a olhar para mim e por mim. E devo dizer que entre os meus amigos estão muitos que fiz no Facebook, e se transformaram em amigos verdadeiros e não virtuais.

E no amor? Teve o seu grande amor...
Tive a minha grande paixão aos 18 anos, e durou uma vida inteira. Mas claro que me voltei a apaixonar e ainda bem. O meu coração tem lugar para todos, e todos são únicos. Claro que não é a paixão dos 18 anos, é um sentimento mais calmo, mais tranquilo, mas que me faz muito bem. Foi talvez o que me fez reagir à morte do meu marido. Como eu costumo dizer, foi “a minha tábua de salvação”.

Como vê o nosso País? Para onde acha que devíamos caminhar, nesta crise imensa, não só económica, como moral... As pessoas andam tristes, sem esperança. Não acha?
Quem não acha… As pessoas estão sem rumo, sem esperança, mas penso que nunca se deve desistir e que é sempre possível fazer qualquer coisa. Há dias ouvi num telejornal a história de um jovem arquiteto, sem trabalho nem esperança de o ter… que se meteu num curso de sushi e já está empregado…

Acredita que o sonho comanda a vida?
Sempre, mas um sonho com os pés assentes na terra.

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