Documento
Mudar De Vida

Portugueses arriscam a troco da felicidade

Ter, 23/06/2015 - 11:16

Dizem os inquéritos que os portugueses são o segundo povo mais deprimido da Europa, talvez por isso não falta quem sonhe com uma mudança de vida. Muitos já o fizeram. Não pelo dinheiro, mas só para ser feliz. Contamos-lhe estórias de gente, famosa e anónima, que arriscou, correu atrás do sonho e conseguiu.

Todos conhecemos ou já ouvimos falar de alguém que abandonou tudo para recomeçar. Noutra profissão, noutra cidade, país ou que arranjou forma de sobreviver na pacatez de um monte alentejano, porventura o desejo de fuga mais recorrente... 

Apesar da atual crise e desemprego forçarem muitos a mudar de profissão ou de morada, há quem o faça “só” por querer ser mais feliz.

Os números dos que o fazem já são tão significativos e repetem-se por tantas partes do  Mundo, que os sociólogos já estudam o que leva tantos a desejar “mudar de vida”. As razões para a mudança são várias e, geralmente, vão-se acumulando ao longo de uma primeira fase da vida adulta em que uma profissão com que um dia se sonhou se revelou, afinal, pouco satisfatória. 

E a questão deve ser especialmente pertinente em Portugal, país brindado com um dos climas mais aprazíveis do Mundo, mas onde os inquéritos europeus (do Eurostat) revelam viver uma das populações menos satisfeitas com a sua qualidade de vida.

Menos satisfeitos que nós só os búlgaros, num continente em que os países nórdicos, sobretudo a Dinamarca, são aqueles onde a população se diz mais feliz com a vida. A insatisfação com a situação financeira, mas também com os momentos lúdicos são os ítens que mais contribuem para que os portugueses tenham poucas razões para sorrir, quando somos também o povo europeu que mais valoriza a qualidade das relações pessoais. 

 

O publicitário que restaurou uma aldeia inteira

António Ferreira, 43 anos, licenciado em Comunicação Social e foi publicitário durante doze anos, na agência que marcou uma geração de criativos, a Young&Rubicam. “Trabalhei com os melhores profissionais de uma área apaixonante e viciante que me realizou bastante”, contou-nos, por e-mail, a partir da sua morada atual, em Vila do Bispo, no Algarve.

Fui feliz, até aos 30”, explica. “Com a crise os clientes em vez de perceberem que tinham de ser ainda mais criativos, para os consumidores repararem no seu produto, tornaram-se em pessoas chatas, condicionadas ao excel e à pressão comercial.”

Testemunha do “declínio” das agências de publicidade, aos 33 anos, a saúde pregou-lhe um susto: “Depois de me doer a cabeça há 4 dias diagnosticaram-me uma trombose discreta. Achei que não tinha idade para esse tipo de sintomas e precisava de estabilizar a vida familiar, por isso, mudar de vida, acabou por ser uma espécie de remédio santo. Podia ter aberto uma agência, fazer o que os clientes queriam, deixar de ser criativo e ganhar imenso dinheiro... Mas o meu feitio não dá para isso.” Por isso, foi por outro caminho “Fiz reset e comecei de novo.”

Ao conhecer a Aldeia da Pedralva, um sítio em ruínas em Vila do Bispo onde uma amigo já comprara uma casa teve a sua “visão”. Começou por comprar uma casa, semanas depois mais duas, desafiou o amigo a comprar outra casa, depois outro amigo juntou-se ao projeto que consistiu em reconstruir uma aldeia inteira, para fins turísticos.

Hoje, “tenho mais 3 sócios que também acreditaram no projeto e por isso ano após anos vamos vendo o nosso produto mais completo e a fazer mais sentido”. Em 2008, António Ferreira, agarrou na mulher e nos dois filhos, despediram-se do Estoril e mudaram-se para Vila do Bispo onde hoje, recebem hospedes, tratam dos burros que também ali vivem, e muitas outras coisas. 

 

De empresária a “mãe” de 163 cães

Sabe-se que a maioria dos que estão a mudar de vida tem entre 30 e 50 anos. Pertencem à geração que na juventude, em Portugal, foi rotulada de “rasca” mas que, na meia idade, revela qualidades mais admiráveis. 

Marisa Teixeira, 50 anos, empresária, chegou ser proprietária de um restaurante, de um salão de jogos e de um clube de vídeo em São Brás de Alportel, no Algarve.

Recorda como então“vivia desafogadamente, sem muitas preocupações.” Tudo mudou no momento em que “o meu enorme amor pelos animais e a visão da imensa crueldade que eles sofrem”, a levou a fazer algo mais do que já fazia há muito que era alimentá-los na rua, e acolher vários na sua casa.

Fundadora da Associação Coração100dono, contou-nos que tudo começou quando aos poucos resolveu vender tudo o que tinha e que “levei anos a conseguir”  para investir “na compra de terrenos e assumir um refúgio, no momento em que alguns cães de uma associação que acabou estavam sem casa e com um destino mais que certo: a eutanásia.

Foi o desejo inevitável de ajudar o maior número de animais de rua que pudesse – vítimas de fome ou maus tratos – que a levou a criar o refúgio nos arredores de São Brás “quando dei por mim já estava rodeada por cerca de 100 animais e, num ano, tinha o refúgio lotado.

Nessa altura a criação da associação sem fins lucrativos foi a única forma de poder recorrer a outras ajudas, públicas, ou não, mas hoje, preocupações é o que não lhe faltam. “Tive de abdicar de tudo praticamente... Financeiramente ficou muito complicado e a minha vida pessoal deixou de existir pois eles, todos os dias precisam de mim.”

Apesar de hoje viver “um dia de cada vez” e no “medo permanente de algum dia não conseguir tratar dos meus animais, porque passamos por dificuldades diárias por termos animais a mais”, não tem dúvidas: “Temos muitas dificuldades, vivo numa grande insegurança todos os dias, mas valeu a pena e voltaria a fazer tudo igual. Poder acompanhar a recuperação física e psicológica destes “meninos” não tem preço e vale todos os sacrifícios.” Marisa explica que o que a move é o “amor” pelos seus animais: “O meu lema é salvar vidas.”

 

De “moranguita” a cabeleireira no Japão

 

Sara Moniz, 35 anos, ex-atriz, revelada numa das primeiras fornadas dos Morangos com Açúcar, não quis o status e a fama de que hoje gozam antigos colegas da serie, como João Catarré ou Cláudia Vieira, ou a irmã mais velha, a também atriz Lúcia Moniz. Por isso, há dez anos foi tirar um curso de cabeleireiro para Londres. Encontrou uma nova profissão e um amor que a levou a mudar de morada, para Tóquio, no Japão, onde vive com o marido, e as duas filhas, Mii e Yuu, de 6 e 7 anos. Por e-mail contou-nos o que a levou a mudar tudo na sua vida: “Um dos lados negativos da carreira de atriz foi precisamente o mediatismo e a exposição ao público. Isso não me atraía minimamente, o que, junto com outros fatores me levaram a perceber que não era por aí o meu caminho.  Não me sentia minimamente realizada, não sentia prazer e tudo o que envolvia essa atividade começava a tornar-se um esforço. Sobretudo em Portugal, é uma profissão em que só tem trabalho quem se torna num ‘produto’ e isso fez-me muita confusão. Não tinha perfil para isso.

Lembra como em Londres, a formar-se cabeleireira, “adorei o curso desde o primeiro segundo, senti-me logo realizada” e como “de repente tudo começou a fazer sentido.”  Para Sara, só abandonará tudo “quem conseguir estar um bocadinho atenta ao coração. Se eu começasse a ser demasiado racional talvez não tivesse ido. A minha vida mudou completamente, não deixei de ter dias maus e obstáculos, mas quando se está no caminho ‘certo’ leva-se tudo com outra leveza.”
 

De arquitecta a chef de cozinha

Rita Neto, 31 anos, mudou de vida à frente de milhares de portugueses. Até há um ano era arquitecta, mas depois de se sagrar primeira Masterchef Portugal no programa da TVI, hoje estuda em Madrid, na mais famosa escola de cozinha do Mundo, a Condon Bleu. Continua a considerar-se arquitecta “sobretudo quando faço os empratamentos, mas sou uma mulher de muitos sonhos e, para mim, a arquitetura não era suficiente.” Por isso, como “sempre gostei muito de cozinhar, de passar horas e horas a tentar criar pratos para depois ver sorrisos estampados nos rostos das pessoas que provavam, fui atrás de um sonho há muito escondido.”

Acredita que a sua personalidade, explica o facto de, aos 30 anos, se ter lançado num novo desafio: “não gosto de me sentir confortável, assim que isso acontece é porque tenho que mudar alguma coisa.” Mas também acredita que com o fim da Era do “emprego para a vida” as novas gerações devem estar abertas a trilhar novos novos caminhos que têm pela frente: “Acho que o que esta crise teve de bom, foi tornar as novas gerações mais dinâmicas e pro activas, encontrar soluções para resolver certos dilemas.” Por enquanto ainda no Le Cordon Bleu, mas já “com muita vontade de começar a trabalhar no mundo real”, no Verão em Portugal – de onde já recebeu propostas – e em Setembro, “de novo em Espanha num restaurante muito conhecido, mas que ainda não posso revelar”, Rita diz-se “mais realizada” e, sobretudo, que “a percorrer o caminho correto”. Acreditando ser um exemplo de que “tudo se consegue, basta acreditar”, Rita Neto, mudou de vida aos 30 anos, mas ainda não sabe os frutos que irá colher. 

 

O sonho que comanda a vida

António Ferreira, que há dez anos, aos seus 33 anos trocou a publicidade pelo projeto de recuperação da Aldeia da Pedralva, não está arrependido pois, além de “não ter mais, nem menos dinheiro do que tinha”, ganhou outras coisas como “a minha vida, a minha família, mais tempo, mais momentos intensos com os amigos.” E é hoje um forte defensor da máxima de que “o sonho comanda a vida. Quando acreditamos genuinamente, conseguimos o que queremos. Tenho mais 3 sócios, que também acreditaram que de um monte de ruínas podia nascer um projeto fabuloso, e por isso, ano após ano, vamos vendo o nosso produto mais completo e a fazer mais sentido.”

 E acredita que, se ele conseguiu, todos podem construir um futuro diferente: “Basicamente é preciso coragem. As pessoas acham sempre que é mais fácil para os outros, e explicam que têm filhos, uma casa com piscina, um bom carro... Mas eu também tinha isso tudo e mudei.” Já Sara Moniz, que há 7 anos trocou as luzes da ribalta pelo anonimato dos salões de cabeleireiro, diz: “Olhando para trás não teria feito nada diferente”. Apesar de admitir, “não deixei de ter dias maus e obstáculos a ultrapassar”, também diz que “quando sabemos estar no caminho ‘certo’ a verdade é que se leva tudo com outra leveza.”

A meio dos seus quarentas, Marisa Teixeira, perdeu em qualidade de vida quando trocou os negócios pela Coração100dono, mas a luta diária pelo sustento dos quase duzentos animais da associação – que como todas, está a abarrotar de necessidades – fê-la descobrir forças que até desconhecia:“fez de mim”, diz, “uma pessoa mais forte. Até porque os tropeções são muitos, mas tens de continuar sempre de pé”. E, apesar da “enorme frustração que sinto todos os dias ao me deparar com tanta crueldade vinda da nossa raça”, não tem dúvidas de que hoje “sou bastante mais feliz, porque estou a fazer o que gosto. Só dói quando penso que não posso ajudá-los a todos.” Hoje o seu sonho é outro, ainda mais bonito: “Que um dia não sejam precisas mais Marisas no Mundo.”

Siga a Nova Gente no Instagram