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Crónica de Carlos Leitão

Um cão a ladrar em Marte

Seg, 08/03/2021 - 09:30

Rosna dentro de mim um cão raivoso de trejeitos bélicos e nada ergonómicos. Tem envelhecido mais depressa do que eu, e ladra com a persistência de quem entende cada vez menos.

Rosna dentro de mim um cão raivoso de trejeitos bélicos e nada ergonómicos. Tem envelhecido mais depressa do que eu, e ladra com a persistência de quem entende cada vez menos. Não o quero esclarecer, até porque eu próprio me vejo perdido entre a África que não tem direito a vacina e o rover Perseverance que vê em Marte o que o Chade ou o Níger não verão em centenas de anos.

Claro que vejo o progresso, mas custa-me mais entender como é possível germinar milhões de euros para ir à procura de homens verdes e, nos entretantos do planeta Terra, dez países se aviem com 75% de todas as vacinas contra a Covid. Afinal, já andamos todos na lua.

Entrámos no tempo das criptomoedas, dos 120 milhões do Félix e da inteligência artificial, mas falta-nos a ambição de sermos justos, e isso não é para todos, claro está. Para todos, estão aí os tutoriais. O Ferrari fica nas unhas de um fedelho por desmamar que apenas faz vídeos e influencia pessoas. Cresce-se assim, por estes dias, empacotando a capacidade de sonhar e questionar numa plataforma online. E não bufa porque é igual para todos!

Rosna o cão e rosno eu. Estamos a criar párias inertes com uma régua de medição regulada por dinheiro e por tudo o que o mesmo possa comprar, desde que seja simples e dê pouco trabalho. Se o pôr-do-sol ou o mar puderem chegar através de uma pic, tanto melhor. Caso contrário, é esperar para ver se chega a ser tendência ou do mainstream. E nem é preciso procurar, muito menos provocar.

Não há espaço para o culto, seja do que for: um programa de rádio, um jornal, já nem a bica o pode ser porque os cafés estão fechados. E tudo é inquietantemente normal. Renasce o Festival da Canção, agora em modo pós-moderno, e dá-se de comer ao público com uma mão fechada e outra a mostrar-lhe o que vestir que é, afinal, o que realmente importa na música e num mundo com vista para Marte.

Siga a banda, lá vamos cantando e rindo, olhando para o lado e cuspindo para o ar, e pagando (os que podem) para que se pense e aja. O cão ladra, mas a caravana nem vê-la. Via verde para o futuro… mas sem portageiros, naturalmente.

Texto: Carlos Leitão, fadista

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